Uma família de fé e tradição afro-baiana: a família Santana – Parte Final


Um culto ancestral: os terreiros de Egun, por José Santana Sobrinho

                                                                

                                                                       Os mortos dão continuidade à vida

                                                                       Mensagem de José Santana Sobrinho

                                                                                             

Por intermédio de Paulo Santana, conheci o seu irmão José, o mais velho entre os filhos vivos de Jaguaracira Santana. Tinha um comportamento admirável: demonstrava  maturidade,  calmo, ouvia mais que falava, além de ser um perfeito gentleman. Com formação acadêmica, professor da Universidade de Feira de Santana, logo nos tornamos bons amigos. Não era incomum, semanalmente, nos finais de tarde ele aparecer no CEAO, então no Pelourinho, para agradáveis bate-papos. Sempre curioso sobre os africanos, às vezes, deixava-me, sem respostas para as suas perguntas. Eu pesquisava sobre o assunto e retornava o conhecimento adquirido para ele. Evidente que eu deixava explicito, a minha fragilidade e ignorância, sobretudo em relação à  África. Apresentou-me um artigo seu numa coletânea sobre a capoeira na escola, afinal, a sua formação era em Educação Física. Gostei do artigo, mas pressentia que a sua ambição intelectual era outra. Logo após, chegou a Salvador o professor Félix Ayoh´omidire, nigeriano da iorubalândia, que veio para a Bahia para estudar – tornou-se Doutor em Letras na UFBA – e ensinar a língua dos ancestrais de José Santana Sobrinho no CEAO. Tornou-se José um aplicado aluno, destacado por seu professor, inclusive tornando-se amigos, além de outros vínculos estabelecidos no campo da religião. O tempo passou e, entre outras coisas, um dia, levando os alunos americanos para um terreiro de Egun em Ponta de Areia, na ilha de Itaparica quase ele “comete um homicídio” ao fazer-me acompanha-lo na ladeira que conduzia à instituição. Fumante então, por pouco não tive um infarto. Após a preocupação com minha saúde, fui objeto de grande gozação. Para ele, um atleta, foi apenas uma simples caminhada. Lembro isso para refletir que os deuses e seus antepassados talvez o tenham conduzido tão cedo ao Orun, pois tinham uma missão maior a ele destinada. E com certeza, invisível, está velando por sua família e amigos.

Posteriormente, vim a saber, por Júlio Braga, que ele iria julgar a dissertação de José Santana Sobrinho, sobre os Eguns, na UNEB. Perguntei logo: que tal, “meu patrão”? – “Está boa, ele conhece”, disse-me o amigo querido. A sua dissertação transformou-se no belo livro, editado pela EUFBA, em 2015, com o titulo Terreiros Egúngún. Um culto ancestral afro-brasileiro.  Pensei comigo, está mexendo em formigueiro, afinal, já existiam sobre o assunto os livros de dois consagrados especialistas na religião afro-baiana: Juana Elbein dos Santos, com Os Nagôs e a Morte: pade, asese e o culto de egum na Bahia ( São Paulo: Ágora, 1975) e Júlio Braga, com Ancestralidade Afro-Brasileira. O Culto de Babá Egum  (Salvador: Ceao/Ianamá, 1992).  As “formigas” passaram distante, pois José Santana Sobrinho, não repete, tampouco contradiz o já dito, mas antes contempla aspectos mais amplos do culto, de forma didática, que torna plausível a compreensão para leitores os mais heterogêneos possíveis.  

        É um livro de conteúdo denso, com uma amplitude de informações, resultado de sua formação acadêmica e da sua ampla vivência na religião afro-baiana, que revelam a grandeza do seu trabalho de campo. Vou abordar apenas alguns aspectos, que demonstram a importância do seu livro.

           Segundo José Sobrinho, nos inícios do século XIX, com a derrota de Oyó, capital militar dos iorubanos, para o reino do Daomé, o seu povo foi aprisionado e conduzido como escravo  para a Bahia. Sendo Xangô um dos reis de Oyó, objeto principal de culto no reino, foi mantido na Bahia. Cultuado como orixá, dele também provém a tradição ancestral masculina Egúngún, babá Egun ou simplesmente babá ou egun. Os Eguns tanto podem ser espíritos de mortos do sexo masculino, assim como podem representar ancestrais coletivos. A presença dos Eguns é a certeza da continuidade da vida. Como diz Santana, os adoradores acreditam que aquilo por baixo das coloridas tiras de pano que veem é um ancestral. E basta. A roupa, denominada axó, em volta do espírito do antepassado simboliza o ritual do mistério e não se deve, ressalta o autor, por descrença ou curiosidade procurar saber o que há por baixo. Isso poderá inclusive, dizem os crentes, conduzir à morte. Não devemos, nós, pobres mortais, nem mesmo tocá-los. Daí a preocupação dos sacerdotes, os Ojés, com sua vara sagrada, em não deixa-los aproximar-se dos assistentes das cerimônias.

       O culto dos Eguns é uma festa para o espírito dos antepassados, preservando o sentido de coletividade e a harmonia dos grupos familiares. Eles se apresentam ao público, após os ritos tradicionais secretos, cobertos com panos coloridos, enfeitados com búzios, espelhos, contas e miçangas. Falam em iorubá, de forma gutural,  inteligível apenas para uns poucos iniciados. O Egun é o pai que ali está retornado, de famílias, linhagens ou dinastias reais. Embora sendo uma espécie de maçonaria masculina, segundo Sobrinho, nele também aparece o poder feminino, representado por Oya Igbalé, rainha dos Eguns. Oya ( Iansã) é cultuada junto com os Eguns, conforme indicam os mitos que a identificam como detentora do poder com os mortos.

     De forma didática, demonstra a forma de organização do culto, onde os membros, de forma geral, pertencem à família dos antigos sacerdotes. Os filhos que acompanham a tradição, cedo começam a frequentar os rituais. Inicialmente, após um Egun dar-lhe um isan, o membro, em geral entre 18 e 22 anos, torna-se um amuisan suspenso. É o primeiro grau da iniciação, onde, agindo com responsabilidade e respeitando a tradição, poderá ser confirmado pelos Alagbás ou Ojés mais velhos. Entretanto, o amuisan não conhece o segredo de invocação dos Eguns.  A categoria seguinte, um passo fundamental para alguns amuisans é tornar-se Ojé, um sacerdote do culto dos Eguns. O mariwô é o Ojé, o mistério sagrado entre a natureza e o humano. Os Ojés tem uma relação com o orixá Ogun, pois, segundo o mito, ele retira das mãos de Oya e das mulheres o segredo do culto dos antepassados Egúngúns. Os Ojés, segurando sua vara ritual, o isan, invocam os Egúngúns, batendo-a no chão.  Mariwô é também  o nome do  Ojé mais velho do terreiro, chamado Alagbá Babá Mariwô. O Alagbá é o ancião do terreiro dos Eguns. Ele possui dois auxiliares, o otun ( direita) e o ossi (esquerda) Alagbá. Acima do Alagbá, sem entrar nas querelas que envolvem o posto, está o Alapinni, que segundo a tradição africana e brasileira, seria o chefe supremo de todos os terreiros de Eguns. Entretanto, seja no passado ou no presente, a tradição tem sido quebrada, por vezes havendo mais de um Alapinni.  Além dos títulos citados existem, além dos alabés, os responsáveis pelos instrumentos sagrados, que produzem a música das festas, vários outros postos executivos e honoríficos, concedidos a homens, mulheres e jovens mais destacados.

            Como não poderia deixar de acontecer há uma relevante etnografia sobre a morte, Ikú, na língua ioruba. Tem início com a retirada dos pertences do falecido do quarto dos orixás; o ritual do velório e do sepultamento, com suas canções fúnebres e peculiaridades; as diferenças entre as cerimônias do culto dos Eguns em Salvador e Itaparica, despontando a questão do tempo do ritual fúnebre. Enfim, é um relato denso sobre o morrer.

            Ebó Odun Ikú é o 2 de novembro, dia de finados, é objeto de grande festa no culto dos Eguns. São três dias de obrigações, com muitas oferendas aos Eguns, como velas, flores,  obis, acaçás, animais votivos, como galos, carneiros, pombas e cobras.  É a celebração dos antepassados, onde o sentido da morte aparece para a comunidade como a renovação e a continuidade da vida. Nem de longe expresso o produzido por José Santana sobre as cerimônias. Apenas cito a sua abordagem da casa de adoração dos ancestrais – Ilê-Ibó-Akú Ati Ilê Igbalê - ; a adoração doméstica, o local e suas cerimônias; as obrigações do presente de Iemanjá – Ebó Odun Iyá l´Odô – no dia 2 de fevereiro; a força feminina na sociedade masculina do culto – Egbé Orin – os seus títulos honoríficos, a responsabilidade pela cozinha ritualística, os cânticos na roda de Exu, além da saudação aos Orixás e Eguns; o titulo denominado Elefundê Ejidê Olukotun, existente no Ilê Asipá, concedido em 1967, na cidade de Ibadan, a Juana Elbein dos Santos. Em seguida traça uma pequena história de vida das Iya Egbé, o titulo honorífico da responsável pela comunidade, conhecidas dos terreiros: 1) Mãe Senhora, Maria Bibiana do Espírito Santo  (1890- 1967) , cuja vida se entrelaça com a história dos terreiros Egúngúns, mãe do Mestre Didi: presente desde o terreiro do Tuntun velho de Marcos Teodoro Pimentel, Alapini Tuntun, no qual ela tinha o título de Otun Iya Egbé. Contemporânea de antigos sacerdotes como Eduardo Daniel de Paula e posteriormente do Alagbá Antonio Daniel de Paula. Muito mais ele diz sobre a grande sacerdotisa, não esquecendo os vínculos de amizade com Miguel Santana, o Obá Aré, do Afonjá, uma das figuras mais importantes da religião afro-baiana  2) Maria Saloméa Daniel de Paula ( Saló) ( 1900-1984), Ialorixá do terreiro de Ponta de Areia, assume o posto de Iyá Egbé Omo N´ilê Agboulá, em 1967, com a morte de Mãe Senhora.  D. Saló, como era conhecida foi uma das esposas de Arsênio Paizinho Otun Alagbá. 3) Maria Beatriz Ferreira Novais, conhecida por Iyá Egbé Mariinha, nascida em 1917, foi herdeira direta de Marcos Teodoro Pimentel. Filha do famoso Paizinho, já citado, que faleceu em 1967, durante a pesquisa de José Santana Sobrinho, com 91 anos, ainda participava dos rituais religiosos. Vale salientar que uma das famílias que acompanhou Mestre Didi do Ilê Agboulá para o Ilê Asipá faz parte dos descendentes de Marcos do Tuntun – D. Mariinha, Iyá Egbé, D. Olinda, Otun Iyá Egbé e Genaldo Novais, Alagbá, herdeiros da adoração de Babá Olukotun.

       Embora possam ter existido anteriormente, já nas primeiras décadas do século XIX, inexiste documentação, daí o que se conhece emana da memória coletiva dos terreiros: no princípio os fundadores do culto dos Eguns tinham adoração por um ancestral, por exemplo Babá Okulelê, seria o espírito ancestral do pai de tio Serafim, sacerdote de origem nagô, famoso em meados do século XIX, e que fundou o terreiro em homenagem ao seu pai. Ou no caso de Babá Olukotun que teve seu “assento” trazido por Marcos, o velho, e por seu filho Marcos Teodoro, em sua viagem à África, no final do século XIX.  Os primeiros cultos perfeitamente identificados, já no século XX, foram o Ilê Agboulá, fundado por Eduardo Daniel de Paula; o Ilê Oyá, criado pelo irmão de Daniel, Olegário Daniel de Paula, na Ilha de Itaparica. Entretanto, sempre recorrendo ao passado, a preocupação de José Sobrinho é  com a expansão do culto dos Eguns, a partir da década de 1980 até 2009, seja na Ilha de Itaparica, seja em Salvador. É aí que podemos ver o pesquisador e o religioso. O pesquisador, demonstrando os dias e noites “perdidas” a acompanhar a vida dos diversos terreiros, além da excepcional documentação emanada das entrevistas com as principais lideranças dos cultos de Eguns; o religioso, a refletir criticamente, conforme a sua ortodoxia, sobre as mudanças ocorridas nos cultos de Eguns: a rapidez na concessão dos cargos, o aumento do número de festas, a presença de máquinas fotográficas e filmadoras ( que credita a um precedente do passado), a quebra da senioridade na sucessão e outras transformações que não são consonantes com a tradição ancestral.

    Não poderia deixar de abordar o seu terreiro, o Ilê Asipá, em homenagem à família africana Asipá, do seu fundador, Mestre Didi. Foi fundado em 2 de dezembro de 1980, denominado Sociedade Religiosa e Cultural Ilê Asipá, localizada em Piatã, com acesso pela Avenida Orlando Gomes, em Salvador. O terreiro, conforme Sobrinho, é dedicado à continuidade da linhagem da família de Marcos Teodoro Pimentel, Alapini Tuntun, com quem Mestre Didi foi iniciado ainda criança e o qual tem como patriarca do terreiro Babá Olukotun. O mestre Didi, relata o autor, teve a sua formação litúrgica iniciática com os maiores sacerdotes e sacerdotisas da Bahia. No conhecimento lessé Orixá, é filho biológico de Mãe Senhora, tendo o título de Assoba n´ilê Afonjá, confirmado por Mãe Aninha Oba Biy. No conhecimento lesse Egun, foi discípulo de Arsênio, Paizinho, com o titulo de Korikowê Olukotun. Outra grande influência na vida pessoal e religiosa foi de Miguel Santana, Oba Aré, Ojé Orep e  Zabá, o mais alto posto no terreiro dos africanos Tapa, o sacerdote supremo. Quando o terreiro Asipá foi fundado, os descendentes das famílias de Arsênio e Miguel Santana foram convidados e aceitaram participar da fundação e dos rituais do novo terreiro de culto à ancestralidade.

            Reconhecido pela comunidade sacerdotal dos Eguns, Mestre Didi é o Alapinni do Ilê Asipá. José Sobrinho o considera o Alapinni do Brasil e que deveria ser visitado e consultado por todos os lideres de terreiros. Infelizmente, hoje já não tenho o querido amigo para as conversas fúteis e brincadeiras, além de não esquecer da cerveja quente que tomávamos na segunda feira de carnaval. Nunca esqueci que um dos Ojés perguntou junto ao Mestre, qual o meu Orixá. Eu disse que não sabia. Aí o interlocutor disse-me para o Mestre jogar os búzios para mim. Ele respondeu, sorrindo: “saber prá quê, ele vai cultivar, não vai. Deixa quieto, quem tá quieto”. Era este o meu amigo, não a do profundo conhecedor da religião afro-baiana e africana tradicional. Felizmente, pude, com o apoio dos  meus colegas da Universidade Federal da Bahia, conceder-lhe o título de Doutor Honoris Causa.

Mas, voltemos ao precioso livro. No Asipá, o Alagbá é Genaldo Novaes, na época em que Sobrinho escrevia o livro, já tinha 30 anos de iniciação como Ojé do Ilê Agboulá. Genaldo é neto do famoso Alagbá, o “Paizinho”, figura de destaque dos terreiros de Eguns do passado. E filho legítimo de Maria Beatriz, Iyá Egbé N´Ilê Agboulá e Asipa. O titulo de Otun Alagbá é de José Félix dos Santos, neto de Mestre Didi, com 21 anos de iniciado como Ojé Ilê Agboulá, sendo filho legítimo de Nídia dos Santos, Iyá Badabarawô N´Ilê Asipá, filha do Mestre Didi. O título de Osí Alagbá era do autor, José Santana, com 25 anos de iniciado como Ojé do Ilê Agboulá, neto de Miguel Santana e filho legítimo de Jaguaracira Devezas Santana, Iyá Modé N´Ilê Asipá, filha de Miguel Santana. Fui a duas festas noturnas e alguns sábados durante o dia – poucos, 3 ou 4, se tanto – no Asipá e sempre fiquei entusiasmado pela dedicação, pelo respeito à hierarquia, à senioridade iniciática e á beleza dos rituais sagrados. Com o falecimento de Mestre Didi ocorrerá o processo de sucessão, que espero seja em paz, com todos unidos no fortalecimento de uma das mais importantes casas da religião afro-brasileira.
     Concluindo, a minha descrição – não é resenha – do livro está muito distante da densidade de informações, derivadas do trabalho empírico apresentado por José Santana Sobrinho. É uma obra fundamental para os estudiosos da religião de origem africana no Brasil, já vindo a sua 2a edição, o que demonstra que veio para ficar.    

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