DICIONÁRIO DAS CULTURAS ALIMENTARES
Jean-Pierre Poulain é
um dos mais respeitados nomes, internacionalmente, no campo da alimentação.
Infelizmente, só temos em português o seu original e criativo livro, Sociologias da Alimentação. Os comedores e
o espaço social alimentar, publicado pela UFSC, em 2006. Portanto, trazer à
tona a tarefa hercúlea e os mecanismos utilizados pelo autor na construção de
um dicionário e, quem sabe, interessar a tradução a alguma editora brasileira,
além de dar conhecimento à meia dúzia de frequentadores do meu blog, é uma
grande satisfação. Uma orientanda minha, outro dia perguntou-me, se no meu blog
eu fazia resenhas. Eu expliquei-lhe que meu objetivo era antes de tudo
didático, informativo; sendo resenhas, trabalhos críticos, positivos ou
negativamente. Estou cansado para polêmicas, daí eu só escrever sobre o que gosto
e acho importante. Isso, às vezes, deixa amigos e conhecidos fora das minhas
observações.
Organizado por Jean-Pierre Poulain
foi publicado, em 2012, o Dictionnaire
des cultures alimentaires ( Paris: Presses Universitaires de France), com a
participação de uma comissão científica de alto nível, além da participação do
Centro de Tradução, Interpretação e Mediação Linguistica da Universidade de
Toulouse e com o apoio financeiro da Fundação Nestlé, da Universidade de
Toulouse 2, do Instituto Superior de Turismo, Hotelaria e Alimentação e do
Centro de Estudos e Pesquisas: Trabalho, Organização e Poder. O dicionário contém
230 artigos, com 162 autores, em 1.466 páginas, representando diversas
disciplinas das ciências sociais, da sociologia à arqueologia, da história à
psicologia, especialistas da medicina, da nutrição, da agronomia, das ciências
dos alimentos. Esta perspectiva interdisciplinar foi marcada pela presença de
autores de diferentes tradições linguísticas, evidentemente com a predominância
francesa e inglesa, mas também com um percentual significativo de escritores de
línguas portuguesas, espanhóis, russas, japoneses, que trabalharam e escreveram
em sua própria língua. Devo salientar a contribuição de 26 ( não tenho total
certeza do número preciso) pesquisadores das Universidades ou organismos
brasileiros. Antropólogos, sociólogos, médicos, nutricionistas, geógrafos,
historiadores. Gente que eu conheço pessoalmente, como Maria Eunice Maciel, Carmen Rial, Raul Lody,
Claude Papavero, Klaas Woortman; outros que conheço de leituras, como Ana Maria
Canesqui, Henrique Carneiro, Monica Abdalla, Janine Collaço, Roberto Da Matta;
outros que não conheço nem mesmo por leituras ou li e esqueci ( ressalto que
sou um neófito no campo, daí as antecipadas desculpas), como Carlos Roberto
Antunes dos Santos, Malaquias Batista dos Santos, Luciene Burlandy e tantos
outros importantes nomes. Os assuntos por eles abordados, mostram a nossa já
significativa produção, envolvendo o açaí, o açúcar, o churrasco, o azeite de
dendê, o feijão e a feijoada, o milho, a mandioca, a pizza, animais leiteiros,
o fast-food, a comida a quilo, o canibalismo ameríndio, política nutricional,
desnutrição, alimentação suplementar, Josué de Castro, Câmara Cascudo, Gilberto
Freyre e outros tantos temas.
Fiquei pensando nos meus sonhos baianos
da criação de um grupo de estudos interdisciplinares, com antropólogos,
sociólogos, historiadores, arqueólogos, nutricionistas, médicos, gastrônomos, biólogos,
químicos, agrônomos e outras áreas por mim esquecidas. Quem sabe um dia venha
acontecer. Pena que, com a massa crítica já existente nas Universidades baianas,
seja pela falta de uma liderança para encampar a proposta, seja pelo nefasto
individualismo, nada ainda foi feito.
No
prefácio do organizador, ele começa dizendo que após 20 anos, o status da
alimentação mudou. As crises em cascata, do aumento da obesidade e o avanço da
fome, ganharam projeção midiática. A internet, a televisão, os jornais tornaram
a alimentação um assunto de primeira ordem. Em um contexto de transição
epidemiológica, em que se disseminam as doenças da degenerescência, o câncer e
as cardiopatias, a alimentação tem tomado o lugar das epidemias, na medida em
que a ela se atribui que poderia ter uma função preventiva, de forma decisiva.
Não seja obeso, ou morra, digo eu. Por todo mundo, em reação à globalização, as
culturas alimentares locais se veem dotadas do status de patrimônio. Em 2001, a
UNESCO inscreveu no seu inventário como patrimônio imaterial da humanidade, a
gastronomia da França, o regime mediterrâneo e a cozinha mexicana. Para o bem
ou para o mal, o fenômeno já faz parte dos governos brasileiros. Que o diga o
acarajé.
Avança para as crises e riscos alimentares, os usos não-alimentares de
certos produtos agrícolas, os planos nacionais de nutrição e alimentação, e
tantos outros problemas que cercam a temática. Citando vários autores, entre
eles Josué de Castro, atenta que é preciso extrair a fome do registro da
caridade, para a inscrever na agenda política internacional. Para Poulain, as
fomes contemporâneas são devido a problemas de acessibilidade, e não de
disponibilidade. Eis porque, atravessada por esses movimentos, a alimentação
torna-se uma questão politica ( nacional e internacional), uma questão
ambiental, patrimonial, cultural e de saúde pública. Em seguida, trata da
importância das ciências sociais e humanas, no seu amplo espectro, pensarem
esses problemas, e por outro lado, dialogarem com outras disciplinas, da
medicina à agronomia.
Sem detalhar a sua alusão a Durkheim,
Mauss e Edgar Morin, ele enfatiza que é o “fato alimentar” contemporâneo que
constitui o objeto do dicionário. A alimentação, explica, é um fato natural e
um fato cultural. Nela, os dois polos, frequentemente opostos no pensamento
ocidental moderno, se entrelaçam e se confundem, e as práticas sociais que são
o seu suporte, contribuem para a sua regulação. Existe, portanto, uma complexa
imbricação de suas dimensões culturais e sociais com aquelas que emanam do
biológico e da corporalidade.
O irônico, é que sua onipresença na
vida social, seja no âmbito privado e cotidiano, seja no público e faustoso, tem
criado uma paradoxal invisibilidade científica do “fato alimentar”. Demonstra
que esta situação, no país que viu nascer a gastronomia, a França, se mantém a
dificuldade de torna-lo um objeto científico sério. Apesar de nomes memoráveis,
de Barthes a Simmel, só nos fins dos anos 1970,
as ciências sociais passaram a se interessar pela alimentação. Assim, de
uma relativa clandestinidade, em uma vintena de anos, os trabalhos se
multiplicaram. Portanto, o objetivo deste dicionário, é dar a ver a riqueza dos
trabalhos que, desde as ciências sociais, exploram as dimensões sociais e
culturais da alimentação. Face a uma multidão de dados e de fatos procedentes
de diferentes disciplinas, este dicionário pretende traçar os caminhos e abrir
as vias de cooperação cientifica. Para fazer isso, ele se propõe abordar esta
questão através da perspectiva de “modelos “alimentares”, definidos como
configurações do “espaço social alimentar”. Este conceito, desenvolvido no
rastro de George Condominas, permite distinguir o que, na alimentação humana é
“sociologizável” e o que pertence à biologia ou à ecologia, para em seguida
pensar a interação entre estes diferentes níveis. O peso do social e do
cultural se refere a diferentes níveis, desde o registro do comestível e
não-comestível, os modos de produção e aquisição, as práticas culinárias, os
modos de consumo, a temporalidade, os processos de diferenciação social, as
formas de organização das políticas nutricionais e alimentares. Esta perspectiva é completada pela análise
das ligações ao espaço geográfico, sob o ângulo das relações entre uma
população e um território, não esquecendo os contextos diaspóricos, ou ainda a
interação entre várias populações fortemente diversificadas, sob um mesmo
território. A análise histórica é mobilizada para dar a ver as transformações e
as mutações dos sistemas de representações e as configurações dos sistemas de
ação. Um certo número de artigos são consagrados aos aspectos metodológicos,
aos conceitos chaves, à história de sua construção e do seu modo de operação e
ao seu campo de pertinência. Outras análises desses fenômenos alcançam
diferentes níveis do espaço social e geográfico. Enfim, ele buscou os autores,
que contribuíram em maior ou menor extensão, para a construção e institucionalização do campo da alimentação.
Uma
vez o obstáculo da invisibilidade é superado, um segundo obstáculo aparece:
aquele da tentação da exaustividade, de querer cobrir todos os sujeitos, em
termos de escala geográfica, em termos de produtos, em termos de práticas. O
objetivo é mais de conceder uma dinâmica à obra, nas diferentes disciplinas,
nos diferentes paradigmas, nas diferentes partes do mundo, nas diferentes áreas
linguísticas. Além de sua função de inventário de diferentes disciplinas
concernentes ao fato alimentar, esta obra se inscreve numa perspectiva mais
longa. Segundo o autor, estamos, sem dúvidas, senão às vésperas de uma
revolução, no mínimo, face a uma profunda transformação das concepções
nutricionais. O desenvolvimento muito rápido da nutri-genética, da nutri-genoma
e mais ainda da epi-genética, vão reorganizar a visão atual da alimentação,
abrindo novos espaços de pesquisa e sobretudo de diálogo entre as ciências
sociais e a nutrição. Muito mais ele diz dos nossos desafios em relação à
alimentação, mas não vale a pena cansá-los. Conclui: fato nutricional e fato
alimentar, são duas dimensões que participam do bem estar e da saúde dos
comedores humanos. Com o resumo deste brilhante prefácio, espero despertar os
interessados em alimentação na leitura do monumental dicionário.