DE MUSEUS, MC DONALDS E BOURDIEU
Nos inícios do século XXI, tive
acesso a um livro organizado por Bernard Lahire, intitulado Le Travail Sociologique de Pierre Bourdieu.
Dettes et critiques ( Paris: Éditions La Decovert, 1999), era um momento de endeusamento de Pierre
Bourdieu – cada época a Academia tem o seu escolhido – e eu gostei muito do seu
artigo “Da teoria do habitus a uma sociologia psicológica”. O tempo passou e um dia, solitário, na estante
de uma livraria em Salvador, encontrei um livro do mesmo autor, traduzido para o português, denominado A Cultura dos Indivíduos ( São Paulo:
Artmed Editora S. A., 2006, 656 ps).
Óbvio que o título de meu texto, parece meio paradoxal, afinal, o que Bourdieu
teria a ver com museus ou Mc Donalds? Vou chegar lá, de forma muito sintética,
abordando aspectos desta provocativa obra.
O livro aborda
o cruzamento de dois desafios indissociavelmente científicos e políticos: um
diz respeito à interpretação de práticas e de preferências culturais em
sociedades diferenciadas; o outro, tem a ver com a observação do mundo social
em escala individual, com a consideração
das singularidades individuais e a construção social do indivíduo. As pessoas
estão sociologicamente habituadas, desde meados dos anos 60 do século XX, a
pensar a “cultura” – o arbítrio cultural que se impõe e se faz reconhecer como
a única “cultura legítima – em suas relações com as classes sociais ou frações
de classes. Isso leva a denunciar as desigualdades sociais no acesso à Cultura.
Sem dúvidas o grande nome dessa perspectiva na história científica é Pierre
Bourdieu, em especial com A Distinção:
crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. O problema, entre outros, são os
desdobramentos políticos, onde o autor exemplifica que, na França, em 1959, foi
criado um Ministério de Assuntos Culturais, dirigido por André Malraux, para
tornar acessíveis as obras capitais da humanidade, ao maior número possível de
franceses. A ação pública de democratização partia do pressuposto da
apropriação pela elite parisiense, considerada inaceitável, de produtos da mais
alta cultura. O grande problema foi que, apesar do aumento da oferta, houve
poucos efeitos sobre a redução das desigualdades culturais. O observado é que
os meios sociais menos presentes na “vida cultural” não recuperaram o seu
atraso. Aliás, não é só um problema francês, se for um problema, o que duvido,
de todo Ocidente.
A perspectiva de
Lahire, fruto de pesquisas, pautadas em diversas fontes, dezenas de entrevistas
são apresentadas, compõe de maneira diferente a mesma realidade. Ele oferece a
imagem do mundo social que pode ser produzido por um olhar que começa por
examinar as diferenças internas de cada individuo – variações intraindividuais
– antes de mudar o ângulo visual e de enfocar as diferenças entre as classes
sociais, ou seja, interclasses. Sob este olhar, lança luz sobre um fato
fundamental, ou seja, que a fronteira entre a legitimidade cultural ( a alta
cultura) e a ilegitimidade cultural ( a subcultura ou simples diversão) não
separa apenas as classes, mas partilha as diferentes práticas e diferenças
culturais dos mesmos indivíduos, em todas as classes. De fato, em escala individual,
o que primeira salta aos olhos do observador é a frequência estatística dos
perfis culturais compostos de elementos dissonantes: estes são absoluta ou
relativamente majoritários em todos os grupos sociais (embora nitidamente mais
prováveis nas classes médias e altas do que nas classes populares), em todos os
níveis de formação e em todas as faixas
etárias. Para situar o leitor, um perfil consonante é aquele onde o individuo,
por exemplo, vai ao teatro “sério”, frequenta museus, vai a concertos, lê
Proust, vê filmes de Bunuel, frequenta restaurantes sofisticados, e por aí vai.
Já um perfil dissonante, o individuo lê Faulkner, vai a museus, gosta de
Spielberg, frequenta baladas, sua música é a popular, gosta de restaurantes caros,
onde come lagosta e toma cerveja. O autor dá um exemplo interessante, o
filósofo “Wittgenstein evocava “o efeito de uma boa ducha”, o que os filmes
americanos produziam sobre ele após um intenso esforço intelectual”. Aliás,
Cláudio Pereira, meu erudito colega, diz que visitou Vivaldo da Costa Lima dias
antes da sua morte, e o sentiu preocupado. Perguntou-lhe o que acontecia e o
renomado antropólogo respondeu-lhe: “Estou aborrecido porque não estou
acompanhando a novela da Globo”.
Os “fatos”
jamais impõem a sua evidência. Eles sempre supõem um olhar que os constituem.
Daí o discurso científico: as estruturas mais fundamentais manifestam-se tanto
nos indivíduos, como nos grupos que eles compõem, tanto nas variações
intraindividuais, quanto nas variações intergrupos. Isso indica, por um lado,
uma pluralidade de disposições e competências, a variedade de contextos de sua
efetivação; por outro, é que podem explicar sociologicamente a variação de
comportamentos de um mesmo individuo ou de um mesmo grupo de indivíduos. Portanto,
a “verdade individual” não se encontra como que encerrada ou encapsulada nos
limites de um cérebro e de um corpo, pois revela-se no desenvolvimento e na
variedade ( diacrônica e sincrônica )
das ações e de práticas do sujeito em geral. Essas concepções são importantes
para a noção de cultura legitima dominante: ela decorre fundamentalmente de uma
sociologia da crença e da dominação. Só se pode falar de legitimidade cultural
se, e apenas se, um indivíduo, um grupo ou uma comunidade crê na importância, e
muitas vezes mesmo na superioridade, de certas atividades e de certos bens
culturais em relação a outros. E a crença na evidente superioridade de uma
cultura não chega a se instaurar, especialmente para aqueles que não tem acesso
a ela, não a dominam, tampouco a desejam; mas também para aqueles que
tradicionalmente estão próximos dela, mas não lhe concedem, de uma forma geral,
grande valor na sua vida. É mais fácil, em nossas formações sociais, ficar
indiferente a uma série de formas culturais eruditas – museu, teatro clássico,
pintura, ópera, dança clássica, literatura, gourmet – do que desprezar o
dinheiro ( o capital econômico) ou o diploma ( o capital escolar), pois as consequências do desconhecimento da ópera
ou da literatura clássica, não se comparam à ausência de dinheiro ou de
posições avançadas no mercado de trabalho. No âmbito de pesquisas sociológicas é comum os
entrevistados adotarem uma atitude de “blefe cultural” que os leva a
superestimar suas práticas legítimas ou subestimar suas práticas menos
legítimas. É como se a ordem legitima – o singular supõe uma única ordem
cultural legítima – se impusesse virtualmente a todos, a cada instante e com a
mesma intensidade.
Além dos indivíduos que em razão de um forte capital
econômico são resistentes aos efeitos da dominação cultural; outros, contestam
a pretensa ordem dominante com argumentos críticos, opondo a cultura divertida,
descontraída, “quente”, à cultura “intelecto”, séria demais, afetada,
pretensiosa, aborrecida, “fria”. Com o rádio, a televisão, e agora com o
celular e o computador – é meu o acréscimo – surge uma outra ordem ou – penso
eu – várias ordens de legitimidade cultural, como a oriunda de grupo de iguais
entre os jovens, o fast food, as novas religiões, tornando-se centro da
realização pessoal dos indivíduos. Há estratos das classes populares que se
mostram sensíveis à dominação cultural:
autodepreciação, vergonha cultural, imitação, compensação; mas, em outros,
diria a maioria, os indicadores “dominantes” são nulos. Os consumos para
relaxar, se distrair, esquecer as preocupações, são frequentes em todos os
meios sociais e contribuem em grande parte para a produção de perfis culturais
dissonantes, mesmo nos mais dotadas escolarmente. Se muitas vezes se reteve da
análise de Pierre Bourdieu na A
Distinção o fato de que os consumos culturais mais legítimos são próprios
das classes superiores, segundo Lahire, não se prestou atenção suficiente ao
fato de que essas práticas podem ser minoritárias mesmo nesse grupo social.
Herbert Gans, em 1992, diz que a teoria da legitimidade cultural, jamais foi
verificada empiricamente. Para ele, a “alta cultura” não é a cultura das
classes superiores, mas sim de um “estrato profissional” que ganha a vida
criando, distribuindo, analisando e criticando os diversos produtos da “alta
cultura”.
Sendo Pierre
Bourdieu oriundo de um meio de fraco capital cultural, o sociólogo é
particularmente sensível ( e hostil) às atitudes populistas e demagógicas
daqueles que louvam tanto mais as qualidades da cultura popular, quanto mais
ela é dominada. Assim, Bourdieu pressupõe: 1) o fato de que é evidente que os grandes proprietários de capital
cultural só podem realmente apreciar os produtos da alta cultura; 2) o fato de
que todo consumo fora do campo da cultura legítima para esses grandes
proprietários de capital cultural decorre de uma “estratégia”, de uma
“atitude”, que não repousa em nenhuma preferência, gosto ou disposição cultural
“autêntica ou verdadeira”. O efeito da ascensão, seja qual for a sua natureza,
é também o de dar aos indivíduos um sentido vertical (hierárquico) da
orientação no mundo social e cultural. E as diferenças não distinguem somente o
grupo entre eles, mas também os indivíduos no interior de um grupo ( mesma
classe social, mesma fração de classe, mesma família). Nas mobilidades ou
deslocamentos, a distinção é tanto para si, quanto uma distinção de si enquanto
membro de um grupo ou de uma classe em face de um outro entendido como
subalterno, inferior. A distinção estará presente entre as classes e
diferenciados grupos na sociedade. Enfim, há distinção em todo espaço social.
Embora Bourdieu admita
a potencial diversidade das situações, ele pressupõe que a probabilidade de um
ator encontrar situações heterogêneas é tão fraca - por seu habitus, ele se manteria
sistematicamente no abrigo de surpresas, de rupturas e de crises: homogamia
social – que não há qualquer chance de que a questão teórica da variação das
situações se coloque empiricamente.
A pesquisa
quantitativa em que se apoia A Distinção foi realizada em 1963, 1967
e 1968, poderia até ver diferenças culturais nítidas em um mundo social com
legitimidades culturais determinadas. Já dos anos 1990 a 2000 poderia fazer a
comprovação de um mundo de fronteiras culturais muito tênues, tornando muito
mais prováveis as combinações individuais de uma pluralidade de gêneros
culturais mais ou menos legítimas. Os dados estatísticos – raramente lidos – da
pesquisa de Bourdieu, tendem a acentuar as diferenças, a ordem das oposições
simbólicas e culturais de forma categórica, sem qualquer nuance, próprio da sua
teoria. A visão legitimista dos consumos culturais proposta por Pierre Bourdieu
em A Distinção, objetiva, ainda
hoje, captar os aspectos essenciais da estrutura de nosso mundo social, mas,
paradoxalmente, parece muito mais adequada à sociedade francesa do final do
século XIX, isto é, uma sociedade proto “cultura industrial de massa e
“pre-midiática” que estabelecia oposições simbólicas claras entre “Cultura” e
“subcultura”, “artes maiores” e “artes menores”. Bourdieu não levou em conta os
mass-midiólogos e os sociólogos da “sociedade de consumo”. Segundo Lahire, ele
não viu que estava errado ao não perceber que seus adversários no campo social
tinham parcialmente razão. Já nos anos 60, Morin, Baudrillard, entre outros, já
começavam a antever, particularmente, as concorrências entre a escola e a
indústria cultural, assim como os efeitos dessas concorrências no campo dos
gostos individuais. A heterogeneidade de práticas e de preferências culturais
individuais é, em primeiro lugar e acima de tudo, o produto da pluralidade e da
concorrência entre influências culturais diversas, como família, pares, escola,
meios de comunicação e agora as famosas redes sociais, com o celular e a
internet. Segundo, há uma baixa relativa da crença na legitimidade da cultura
clássica em relação a uma cultura cientifica, técnica e comercial ( sustentada
pelo sistema escolar ), quanto em relação a uma cultura da diversão popular.
Concluindo, Pierre Bourdieu foi um dos mais expressivos
pensadores do século XX. Entretanto, conforme o pensamento de Lahire, isso não
deve ser um empecilho para críticas sobre aspectos de sua obra. Afinal, nada
nos impede de ler Roth, ir ao museu ver uma exposição de Monet, e depois comer
no Mc Donalds, tomando uma Coca Cola.. Eu preferia ir ao show de Nelson Rufino,
Valmir Lima e Edil Pacheco, e depois ir
comer um mocotó, com cerveja.